Produção de panela de barro é uma atividade ancestral e que envolve toda a comunidade – Jorge Macêdo
Éder Santos
RORAIMA Anna Komanto’ Eseru, que quer dizer “O nosso jeito de ser/viver”, foi o título da 9ª edição do Festival das Panelas de Barro, realizada nos dias 3, 4 e 5 de novembro, na comunidade Raposa 1, na terra indígena Raposa Serra do Sol, em Normandia (RR). A iniciativa independente, que começou como um experimento, em 2012, tornou-se a maior feira de cerâmica indígena de Roraima.
O evento é um grande encontro dos visitantes com a cosmologia Macuxi, modo de vida, culinária, patrimônio material e imaterial, trilhas, lagos e cachoeiras, a sacralidade das rochas, a energia do urucum e da pimenta, dos grafismos, danças, rituais e, sobretudo, do barro traduzido em cerâmicas. Elementos naturais e ancestrais se misturam, na construção da imagem positiva da cultura dos povos amazônicos.
Ko’ko Non, a Vovó Barro, é na perspectiva indígena, a terra que dá o sustento. O alimento físico e imaterial depende do processo ritual que vai desde a entrada na mata para localizar o barro até sua produção. Dois lugares abastecem a produção atual da panela, segundo as artesãs Macuxi: a serra do São João e a localidade de Barro Branco. A produção da panela tem o protagonismo feminino, fenômeno característico da estrutura social dos Macuxi.
Joana de Souza Fidelis, 60 anos, mãe de oito filhos e avó de mais de 20 netos, é a principal instrutora de produção da panela de barro na comunidade da Raposa, atualmente. “Caminhamos a pé, uma hora e meia, para chegar até o São João, subindo duas serras. Para o Barro Branco, que é uma serra alta, levamos meia hora”, conta.
Ela explica que a matéria-prima é específica para a produção das panelas e outros objetos, por isso é preciso extrair corretamente, seguindo o ritual tradicional. O barro é colocado para secar e depois, moído. O material passa pela peneira e é misturado à água para descansar por duas horas. A partir daí, o barro pode ser utilizado pelas ceramistas para a produção manual do molde.
As artesãs usam jaspe, um artefato mineral, para polir os moldes e, em seguida, levam ao fogo com lenha de caimbé, preferencialmente. “Eu sempre perguntei: – quem ensinou? Como veio? Às vezes ouço dizer que foi por meio de sonhos. Mas pergunto: – como sabiam que aquele barro era para a panela? Houve um tempo em que nossos ancestrais diziam que não tinha como explicar, não sabemos de onde veio ou quem que fez. Dizem que é ‘coco da cobra grande’ e tem que respeitar. Vem da natureza. Tem um tempo que, quando vamos na época certa, achamos rápido, quando não é o tempo certo, você não consegue achar”, conta Joana.
E acrescenta que antes de sair em busca do barro, a comunidade utiliza tabaco, tucupi, pimenta nos olhos, urucum no rosto, sangria nas pernas com pimenta, limão e pólvora. “Isso tudo com as orações”, frisa.
Mãe de 11 filhos, a artesã Gracilene de Souza, 57 anos, diz que antigamente as panelas eram feitas sem tampa e sem alças [orelhas]. Entretanto, devido aos pedidos dos visitantes, a produção das panelas foi adaptando-se às necessidades. A panela faz parte do cotidiano dela. “Gosto de fazer damurida, mujica de peixe, mas principalmente damurida”, diz Gracilene.
Outra artesã, Suzete da Silva Raposo, 47 anos, mãe de sete filhos e aluna de dona Joana, explica como aprendeu o processo de produção da panela. “Depois de trazer o barro das serras, a gente pila durante uma semana, fazemos a massa e temos a panela. Depois vai para o aquecimento e depois queimamos pra ficar assim”, diz. Ela comemora a realização do Festival das Panelas de Barro. “Eu acho bonito. Está melhorando. Antes não tinha turista, mas pra mim está bom assim”, celebra.
Leilibete Raposo, é casada com o tuxaua da comunidade. Tem seis filhos e um neto. Ela veio da comunidade Maracanã e mora há 23 anos na Raposa, onde participa ativamente desde a primeira edição do festival. Ela narra sobre a oportunidade dessa troca de saberes com os não-indígenas durante o festival. “Para mim, foi uma surpresa conhecer essa parte dos Karaiwa [branco]. Éramos apenas nós, no começo. Quando chegou essa parte dos Karaiwa, com as fotos, entrevistas, começamos a ter mais incentivo. Estão vindo mais pessoas pra cá e é muito gratificante. Não vamos deixar morrer nossa cultura”, pontua.
Segundo ela, a comunidade responde a cada ano as demandas dos turistas e pessoas interessadas em consumir o artesanato em barro. “Estamos recebendo demandas como a realização de oficinas, estamos produzindo mais panelas para atender aos visitantes e isso é bom”, pontua. Perguntada sobre as comidas que faz com as panelas, Leilibete diz que: “em primeiro lugar, todo tipo de damurida! De peixe, carne, frango ou carne de caça”. “As pessoas ficam surpresas quando falamos em damurida de frango, mas pode fazer sim! É só ter pimenta e tucupi. Fazemos arroz, feijoada, tudo fica bom na panela de barro”, ensina.
Projeto busca indicação geográfica das panelas de barro
O coordenador do evento, Enoque Raposo, enfatiza que o propósito do Festival das Panelas de Barro é trabalhar os costumes e tradições da Raposa. “Hoje o evento tem dado resultados positivos para a nossa comunidade. Estamos trabalhando outros projetos associados, como o etnoturismo, que já é uma realidade. Outro projeto é a criação da indicação geográfica (IG) das panelas de barro que se alinha ao turismo e ao festival”, ressalta Raposo.
Ele lembra que a IG das panelas de barro ainda está em processo de registro junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que identifica a origem de um produto ou serviço com suas qualidades peculiares, resultantes da origem geográfica.
Sobre a visitação turística, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) aprovou, em setembro de 2020, o Plano de Visitação Turística elaborado pela comunidade em parceira com diversas instituições e apoiadores, tornando-se a terceira terra indígena no Brasil autorizada pelo órgão a exercer a atividade de etnoturismo. As duas primeiras estão localizadas no Pará, na terra indígena Menkrangnoti (Kaiapó), e no Mato Grosso, na terra indígena Pequizal do Naruvôtu (Kalapao).
A Funai emitiu outras 32 cartas de anuência, nas quais 17 estão em pleno funcionamento, uma é referente ao plano de visitação da comunidade indígena Raposa 1. Outras quatro estão em estudo e oito estão sendo analisadas pela Coordenação-Geral de Promoção ao Etnodesenvolvimento (CGEtno/Funai).
Enoque Raposo considera que, com o festival, os visitantes têm contato com o modo de vida Macuxi. Há atividades como competição de arco e flecha, grafismos, rituais próprios do trabalho com o barro, visitação aos lagos e cachoeiras. “Eles conhecem nossa cultura, como a culinária, a damurida, o pajuaru, o mocororó. Nossa preocupação é manter os nossos costumes, que é a forma como nossos antepassados viviam. Estamos buscando preservar essa cultura milenar”, explica.
Flávia Bezerra é representante do escritório regional do Ministério da Cultura em Roraima (MinC/RR). Ela explica que o festival deve ser valorizado por permitir uma vivência cultural peculiar. “Conhecer a cultura e vivenciá-la com toda a comunidade é permitir valorizar cada vez mais esse patrimônio, principalmente o imaterial que está muito presente nesse local”, analisa.
Ela ainda traz notícias importantes sobre os editais promovidos pelo MinC e a importância de um acesso maior por parte das organizações indígenas. “Temos percebido que as comunidades indígenas estão participando muito pouco. Já estivemos no município de Uiramutã, no Amajari e agora aqui na Raposa para começar a trabalhar as estratégias para que cada vez mais as comunidades tenham acesso e enviem propostas aos editais que estão aberto”, sinalizou.
Fundo Indígena financiou o festival
O Festival das Panelas de Barro foi um dos projetos aprovados no edital do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira (Podáali), vinculado à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e à União das Mulheres Indígenas da Amazônia (UMIAB), movimentos indígenas no Brasil, que compõe a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).
As atividades, que foram interrompidas nos anos de 2020 e 2021 devido a pandemia da Covid-19, voltaram em 2022 em grande estilo, mobilizando o setor turístico, instituições municipais, estaduais, federais, comunidades vizinhas e visitantes de outros estados.
Cláudia Soares é indígena do povo Baré, habitante do Alto Rio Negro, no Amazonas. Ela é membro da diretoria executiva do Podáali e, junto a jornalista Daniela Lopes, veio de Manaus para participar do evento em Roraima. Ela explica que o fundo recebeu 305 propostas dos estados da Amazônia. Desses, 297 foram validados, 74 foram classificados e 32 selecionados.
Roraima enviou 12 projetos, sendo três selecionados. Um deles foi o Festival das Panelas de Barro; os outros dois foram: 4 Estações (União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira) e Amigos do Wayamu – I Encontro com Parceiros Indígenas da União do Território Wayamu (formado por unidades territoriais do PA, AM e RR). “Os pontos observados foram aqueles voltados para mulheres, juventude e a abrangência territorial. Isso deu uma visão holística de território e de quais temas são prioritários na Amazônia”, explica Cláudia, que participou da mesa de abertura.
Lugares, ancestralidade e afeto
Até o início do século XX, a população da Raposa vivia nas serras, em vários lugares localizados nas fronteiras do Brasil e Guiana, onde faziam suas celebrações que duravam até três dias. Eles desceram aos poucos para ocupar a região do lavrado, constituindo o que denomina-se hoje de comunidade indígena da Raposa, a Maikan Pisi’ Pata’, na língua materna.
A vida nas serras sempre foi rica em bens naturais, rituais e símbolos sagrados, percebidos nas rochas e igarapés. Viviam da roça, caça, pesca, coleta de frutos e o sal era extraído nas proximidades de uma serra chamada Atola, cujo solo é salinoso. A mobilidade das famílias ocorreu em virtude das intervenções da cultura não-indígena, como a chegada da escola, na primeira metade do século XX, somada às condições naturais favoráveis no lavrado, onde imaginavam que alagava no período chuvoso.
A comunidade da Raposa fica localizada a aproximadamente 180 quilômetros de Boa Vista (RR), na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS), demarcada em 1998, homologada em 2005, mas que só em 2009 teve confirmada sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF), após a luta dos movimentos indígenas. A Raposa é uma das quatro etnorregiões da TIRSS. As outras são: Surumu, Baixo Cotingo e região das Serras que, no total, somam uma área de 1 milhão e 747 mil de hectares, o equivalente a 7,7% da área de Roraima.
O professor e pesquisador Celino Raposo, do Instituto Insikiran de Educação Superior Indígena da UFRR, nasceu e criou-se na Raposa. Ele esteve presente ao evento. Geógrafo, sábio e filho de pajé, Raposo disse que teve a oportunidade de entrevistar a matriarca do povo Macuxi das serras, a Vovó Damiana [Ko’ Ko’ Damiana] e ouvir sobre as histórias da formação da Raposa.
A saudosa anciã que, ao longo de seus mais de 100 anos, viveu com sua família nas serras, foi a responsável em repassar os saberes da produção da panela de barro para as futuras gerações. “Nossa terra apresentava lindas paisagens que acabaram permanecendo definitivamente”, diz Damiana em entrevista rara ao professor Raposo, publicada na dissertação “Escola, língua e identidade cultura: comunidade Makuxi Raposa” (2009). O barro extraído das serras é a memória viva da ancestralidade e do afeto ao lugar do povo Macuxi. Agora está na mesa de outros brasileiros e conquistou outras nacionalidades.
Comunidade tem apostado no etnoturismo como fonte de desenvolvimento
O professor Bruno Di Brito, diretor do departamento de Turismo do Estado (Detur/RR) é um entusiasta do etnoturismo. Ele diz que o turismo na Raposa é um trabalho de ponta que se expandiu para outras comunidades. “Hoje nós temos um registro de 32 comunidades que trabalharam com seus planos de visitação. A comunidade da Raposa é uma referência no que se refere a indicação geográfica das panelas de barro indígena”, ressalta.
Brito destaca a inserção da comunidade no projeto piloto intitulado ‘Experiências do Brasil Original’, que traz o olhar do Ministério do Turismo para a Raposa, catalogando as experiências e que será levado para todo o país em 2024. “A Raposa figura nas nossas promoções turísticas do etnoturismo. É uma referência na educação turística. Temos que comemorar todo esse trabalho e o mais importante é o interesse das comunidades em trabalhar com soluções sustentáveis, que tragam recursos, benefícios e contribuem para o desenvolvimento da própria comunidade”, finaliza.