Fui convidado a participar desse site de notícias pela Andrezza Trajano, indicado pelo fotógrafo Jorge Macêdo, para a produção periódica de artigos relacionados à fotografia, natureza e o que vier da minha experiência de 21 anos na Amazônia.
Hoje, dois dias após o parágrafo anterior, o cheiro nos dedos do limão espremido com água morna que tomo toda manhã me trouxe a lembrança do Jaider como faz frequentemente desde que meu amigo permitiu-se reintegrar à terra em seus componentes mais elementares.
O contato quase cotidiano com o Jaider ao longo dos nossos anos de amizade teve influência fundamental na minha história e ainda hoje sinto a sua presença aqui e acolá em coisas simples e em momentos importantes da minha vida.
Jaider Esbell, “artivista indígena”, como gostava de se denominar, nasceu em uma comunidade indígena Macuxi da Raposa Serra do Sol no município de Normandia, em Roraima e, contam seus familiares, que desde seus primeiros anos mostrou-se particulamente curioso e muito interessado em desvendar todo mistério que se colocasse diante dele.
Ainda na infância, sua comunidade se tornou pequena pra tanta curiosidade e foi estudar em um colégio da sede do município de Normandia e, desde então, percebeu-se que os limites e dificuldades da vida de um ser humano não seriam capazes de conter tanto desejo de descobrir o mundo. De domador de cavalo a técnico de torres elétricas de alta tensão, de acadêmico em geografia a contestador da autoridade universal da ciência, colocou-se na sociedade não indígena sob as mais diferentes relações com uma desenvoltura que desde muito cedo denunciava a liberdade quase absoluta com que conduzia sua vida.
Sem grandes referências literárias e ainda cursando o colégio, submeteu o primeiro livro de sua autoria a um projeto de incentivo da Funarte e foi aprovado. Assim como dirigia sua vida, escrevia com muita liberdade e impressiona que, pouco se dedicando à leitura, fosse capaz de tal proeza. Ao mesmo tempo em que dava seus primeiros passos como escritor, começava a esboçar os traços da obra que se tornou tão conhecida e que evoluía naturalmente também sem referências de grandes pintores ou acadêmicas.
Jaider era um pintor que não frequentava galerias ou livros de arte e um escritor que não lia.
Em sua vida escreveu vários livros, mas ficou muito conhecido pela pintura que, segundo ele próprio afirmava, era uma armadilha pra conduzir a consciência dos karaiwa (homens brancos). Há, portanto, por trás da produção artística de Jaider, a vontade de transformação da sociedade em favor de suas causas principais: o cuidado com as populações indígenas e a preservação ambiental. A partir de determinado ponto de sua carreira artística, Jaider passou a enfeitiçar deliberadamente os ambientes sociais que frequentava assumindo a posição de uma espécie de Xamã do mundo branco, fazendo performances em eventos, difundindo seu discurso potente ao mesmo tempo em que mergulhava em sua trajetória de evolução espiritual.
Com menos de 40 anos e uma curta carreira de pintor, Jaider se tornou conhecido nas mais conceituadas instituições mundiais dedicadas ao estudo e promoção da pintura. Passou a viajar o mundo percorrendo galerias, museus e universidades, enfeitiçando com suas performances, sedimentando suas ideias.
Em seus primeiros anos de carreira artística, criou em Boa Vista um espaço coletivo para promoção da arte indígena contemporânea, a galeria Jaider Esbell. Testemunhei muitas vezes situações em que ele recebia jovens indígenas na galeria e os motivava a pintar doando kits de canetas e outros materiais de pintura sob o compromisso de lhe trazerem o resultado. Eu próprio fui a exceção não indígena desse processo quando ele me propôs fazer a composição dos fundos e colorização das imagens de um mini livro com figuras produzidas por diversos Xamãs em um encontro desses Xamãs em comunidade indígena. Vários desses jovens figuram hoje nas principais vitrines da arte do mundo todo. Com isso, diversas comunidades indígenas de Roraima descobriram na produção artística um poderoso instrumento de autoafirmação, emancipação e de defesa dos ambientes naturais.
Em 2021, Jaider foi aclamado na 34ª Bienal de São Paulo, sendo considerado pelos seus curadores como a “espinha dorsal” daquele evento e, diante do convite para montar simultaneamente uma exposição individual no MAM-SP, exigiu que essa exposição fosse coletiva, sob sua curadoria e cujos artistas expositores fossem muitos daqueles que ele “transformara” em pintores. Com isso, Jaider inseriu 30 artistas indígenas de diferentes etnias num dos maiores palcos nacionais da pintura.
Em seu discurso, Esbell sempre deixou explícito que percebia a sua existência como algo que transcendesse o tempo e o espaço da vida humana, seja do ponto de vista dos constituintes mais elementares de sua própria matéria, seja da concepção espiritual dessa existência. Nos seus últimos anos de vida tratava dessas questões manifestando muito interesse por esse tema.
Foi durante a mesma Bienal que soubemos estarrecidos da decisão do Jaider de partir para outras dimensões. No auge de sua carreira meteórica, aos 42, Esbell nos deixou após causar uma verdadeira revolução do conceito de arte, escancarando as portas de instituições, tão herméticas e conservadoras como os grandes espaços de arte institucionais, para a manifestação de novos artistas de diferentes origens.
Vários dos mais importantes curadores brasileiros e internacionais, como Paulo Miyada, reconheceram essa influência do Jaider que fez o mundo das artes repensar o papel das instituições, o papel da arte e dos artistas e a influência do mercado nessa seara de origem tão nobre que aos poucos foi se tornando ferramenta do capital.
Hoje, Jaider Esbell está presente nos acervos de galerias do mundo todo, seus textos são objeto de estudo em várias das mais importantes universidades do globo, sua obra ganha a cada dia mais interesse e o seu legado multiplica os defensores de suas causas.
No último dia 8 de julho, participei da singela cerimônia de inauguração da Casa da Cultura Jaider Esbell, em Normandia, e pude perceber a força desse trabalho nos inúmeros jovens artistas indígenas presentes que produziram diversos murais no edifício em homenagem a Jaider.
Xamã, revolucionário, feiticeiro, artista, Jaider não cabia em conceitos predefinidos, não gostava de ser chamado de pintor (talvez se sentisse menor assim). Nesse exato momento, ele participa de alguns eventos pelo mundo como o ”Siamo Foresta” da Fundação Henri Cartier-Bresson, da França, na Trienal de Milão, do “Together We Art” na Índia por ocasião do encontro do G20 naquele país e, se você é de Manaus, visite a praça do Teatro Municipal. Quem sabe, ao confrontar a obra “Entidades” na fachada do teatro, que integra o evento “Cura Amazônia”, você não passe a ver o mundo com mais otimismo com um simples gesto de cortar um limão?